Fernando Mânica*
Recente declaração do presidente da República acerca da não obrigatoriedade de vacinação contra a Covid-19 reavivou questionamento filosófico importante. Até onde vai a possibilidade de interferência estatal na vida humana? O direito individual ao próprio corpo e escusas por motivo de crença podem ser opostas ao comando estatal de vacinação compulsória?
Esse debate remonta ao início do século passado, quando o médico Oswaldo Cruz propôs a vacinação compulsória contra a varíola, que deu origem à Lei n. 1.261/1904. Foi a gota d’água para a explosão de grave revolta popular no Rio de Janeiro. De modo emblemático, o jurista e político Rui Barbosa posicionou-se contrário à introdução compulsória de substância capaz de contaminar seu sangue. Em poucos dias a vacinação deixou de ser obrigatória e o governo passou a fazer campanhas de conscientização. Com a aderência espontânea à vacina, chegou-se a chamada imunidade de rebanho. Após alguns anos, Rui Barbosa declarou publicamente seu apreço pela coragem de Oswaldo Cruz ao defender a vacinação.
Passado mais um século, a questão de fundo permanece a mesma com a Covid-19. Ainda que a Lei n. 13.979/2020 preveja expressamente que as autoridades poderão determinar a realização compulsória de vacinação, resta indagar se tal preceito encontra respaldo constitucional. Trata-se, em última análise, da ponderação entre o direito coletivo de segurança sanitária e o direito individual de autopossessão.
O Supremo Tribunal Federal não possui entendimento consolidado sobre o tema. Em sua manifestação mais recente, o STF reconheceu a repercussão geral de um recurso que questiona a obrigatoriedade de os pais vacinarem seus filhos. Isso significa que ainda haverá discussão antes de se chegar a uma decisão aplicável a generalidade dos casos.
De todo o modo, a Constituição de 1988 impõe ao Estado o dever de proteger a saúde das pessoas (art. 196), por meio de uma série de ações, dentre as quais a vigilância sanitária (art. 200, I). Portanto, a Constituição admite a vacinação compulsória, desde que haja indicação médica, com segurança ao cidadão e efetividade na proteção da coletividade. No Brasil, tal avaliação é de competência da ANVISA (que aprova a comercialização e uso de fármacos no país) e do Ministério da Saúde, com apoio da CONITEC (que incorpora novas tecnologias ao SUS).
Na hipótese de vacinação compulsória, esses cuidados devem ser redobrados em virtude da responsabilidade objetiva do Estado. Com ela, eventuais danos causados pela vacinação obrigatória podem gerar a condenação do Estado em pagar indenização a cada cidadão lesado. Imagine-se 200 milhões de pedidos de indenização.
Nesse plano, a fala do presidente deve ser interpretada na vedação ao uso da força física, como se as pessoas fossem gado em um curral de manejo. A obrigatoriedade deve decorrer da exigência do certificado de vacinação para a prática de determinados atos, como viajar de ônibus ou avião, ou para a emissão de documentos oficiais. Em qualquer hipótese, a conscientização acerca da segurança e dos benefícios individuais e coletivos da vacina, bem como a criação de incentivos (‘nudges’) à imunização devem preponderar à imposição legal. Afinal, queremos alcançar a imunidade de rebanho, mas não podemos ser tratados como gado e tampouco nos comportarmos como tal.
*Fernando Mânica é doutor pela USP e professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo.